Lançamento agosto 1, 2025
POV CAERA DENOIR
Ergui os olhos para a estrutura incompreensível que já começavam a chamar de Espiral das Relictombs. Quando Arthur nos ordenou que fugíssemos, o que restava de nosso pequeno exército foi levado por plataformas de pedra e gelo, e de longe assistimos àquela espiral erguer-se das montanhas. No entanto, ver aquilo de perto… a verdadeira dimensão ultrapassava qualquer noção de lógica.
Um calafrio percorreu minha espinha enquanto eu permanecia à sombra e ponderava sobre o que Arthur havia se tornado. Duvido que até mesmo os asura fossem capazes de algo assim. Até os relatos mais exagerados sobre o poder de Agrona empalideciam diante daquilo.
Passei os dedos pelos cabelos, agora na altura dos ombros, enquanto meu olhar seguia a espiral até o ponto em que três estruturas azuladas e enevoadas se entrecruzavam no topo. Epheotus. Trazida ao nosso mundo e remodelada, assim como as Relictombs.
Um lugar tomado por monstros. O outro, por divindades.
Outro calafrio. Uma brisa fria cruzou as planícies não naturais que agora ocupavam quase toda a Cordilheira Presas do Basilisco, reduzida a um círculo protetor ao redor da Espiral.
Um ombro chocou-se com força contra o meu, fazendo-me tropeçar à frente.
— Vamos, rainha Denoir — disse uma voz familiar —, ficar parada, boquiaberta, nunca nos levou a lugar nenhum.
Por um instante, quase reagi com um chute rápido em seus tornozelos, mas uma vida inteira de etiqueta emergiu quando reparei no séquito de guardas ao seu redor e no número crescente de pessoas na estrada. Alguns se dirigiam à espiral, outros ainda saíam dela aos poucos.
— Você está aqui para representar Alacrya no encontro mais importante de nossas vidas, Maylis. Por favor, comporte-se como uma adulta.
Minha amiga, Maylis, matriarca da Casa Tremblay, apenas sorriu e arqueou as sobrancelhas cuidadosamente delineadas sobre os olhos cor de vinho, que brilhavam com malícia.
— Você quem quis assim. Havia uma centena de outros alto sangues prontos para se matar por essa chance.
Soltei um riso seco e retomei a marcha rumo à entrada da espiral.
— E é justamente por isso que eles não estão aqui — falei.
— Sim, em vez disso, teremos a brilhante astúcia política de Kayden Aphelion e Amellie Bellerose — respondeu, passando a língua pelos dentes. — Já reparou como é fácil se acostumar com isso? Pelas presas de Vritra, é um alívio não ter que pronunciar todo aquele “do Alto Sangue blá blá blá” o tempo inteiro.
Ri, apesar do nervosismo, o que provavelmente era exatamente o que ela queria ao agir como uma wogart.
— Agora só falta parar de invocar os Vritra em cada frase — provoquei.
A expressão dela escureceu. Cuspiu no chão antes de apressar o passo para me alcançar, os guardas vindo logo atrás.
— Isso é mais difícil de mudar. Talvez devêssemos discutir, nessa tal reunião, maneiras apropriadas de xingar agora que nosso deus-rei está morto. — Ela balançou a cabeça. — Tanto faz. Em breve, todos vão começar a invocar seu belo namorado de olhos dourados. “Pelas madeixas cor de mel de Arthur Leywin, por favor, me poupe, rainha Denoir!” — Ela explodiu em gargalhadas, atraindo olhares estranhos de quem passava.
Revirei os olhos, mas não respondi. Em vez disso, deixei-me absorver novamente pelas construções ao redor da base da espiral, reconhecendo algumas delas: uma espécie de vila havia se formado em torno dela. Notei também o imenso arco coberto de runas que, antes, servia como principal portal de ascensão no segundo nível.
Um leve sorriso se insinuou em meus lábios. Belo detalhe, Arthur.
Não me surpreendeu que não houvesse vendedores ambulantes ou barracas. Ainda que visse construções que reconhecia como estalagens e restaurantes, nenhuma estava aberta. Eu não estive envolvida diretamente nos dias que seguiram a queda de Agrona, minha atenção fora puxada em outras direções, mas sabia que o esforço para catalogar e realocar todos os refugiados que estavam dentro das Relictombs quando… atravessaram… havia sido gigantesco. Muito maior que meu próprio projeto de repatriar os sobreviventes de Cargidan.
Parte da infraestrutura original ainda permanecia: locais que distribuíam comida gratuitamente e que, agora, exibiam filas modestas, mas nenhum comércio funcionando. Seria preciso tempo até que algum tipo de estrutura permanente se estabelecesse de novo.
Seja lá o que esse lugar se tornasse no futuro, no presente ele era apenas um lembrete colossal da mudança devastadora que varria o continente.
Reconheci vários soldados da rebelião de Seris guardando a entrada, ainda que não soubesse o nome de nenhum. Eles devem ter me reconhecido também, pois abriram passagem; exceto uma mulher de meia-idade em armadura negra fosca, com marcas onde detalhes em carmesim haviam sido removidos. Ela se apresentou rapidamente, conferiu os nomes de Maylis e meu na lista e nos conduziu sob o arco monumental.
Nos foi oferecida uma charrete de tração arcana. Enquanto os guardas de Maylis eram levados com promessas de descanso e comida após a longa jornada, nós seguimos em frente.
O condutor, sentado num banco elevado à frente, guiava o veículo suavemente.
— Espero que esse problema com os tempus warps seja só temporário — disse Maylis, observando-me como quem desconfia de segredos não contados. — Como a Guilda dos Ascendentes vai explorar este lugar se todos tiverem que vir a pé?
— Seris não sabe o porquê os tempus warps não funcionam. Ou, se sabe, mentiu muito bem.
Ela ergueu levemente as sobrancelhas, o olhar insinuante.
— Certamente seu namorado de olhos dourados…
— Como já expliquei, não tive notícias de Arthur desde… tudo isso — respondi, gesticulando para as Relictombs ao redor. — E, por favor, pare de chamá-lo assim. Nós não estamos… juntos.
Ela recostou-se no assento, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça.
— Parece falta de empenho. É verdade que ele está noivo de alguma elfa franzina de Dicathen? — Ela estalou a língua, impaciente. — Você devia desafiá-la pela mão dele. — Olhou-me com uma seriedade desconcertante. — Pelo bem de Alacrya, se não por você. Quem sabe quanto tempo teremos antes que outra desgraça comece? Queremos mesmo que o homem que criou tudo isso — disse imitando meu gesto anterior — se case com o “time adversário”?
Soltei uma risada incrédula.
— Ele já é parte do outro time, com ou sem casamento. Mas Arthur também não é… assim. Ele não escolherá lados. E devíamos nos concentrar em garantir que isso nunca aconteça, em vez de nos prepararmos para quando acontecer.
Era estranho ver as Relictombs dispostas de forma tão incomum. Havia construções que eu reconhecia ao lado de outras completamente novas, e quase todas organizadas de modo diferente daquele que recordava, quando ainda estavam além dos portais de ascensão. As únicas pessoas à vista eram soldados e oficiais da Associação de Ascendentes. Provavelmente avaliando a situação. E mesmo esses eram poucos, devido à reunião que eu estava a caminho.
Nosso condutor guiou suavemente o veículo por um caminho que devia lhe ser bem conhecido, desacelerando até parar diante de nosso destino. O tribunal estava praticamente igual a antes: as mesmas janelas arqueadas preenchidas por vitrais coloridos, as mesmas gárgulas ameaçadoras vigiando todos que se aproximassem, até mesmo as sinistras espirais de metal permaneciam.
Paramos diante das portas no exato momento em que outra carruagem partia. Vi Kayden Aphellion mancando ao subir os degraus, sendo recepcionado por um atendente e guiado para dentro, presumivelmente com instruções para a câmara certa.
— Pronta para encarar os próprios deuses? — perguntou Maylis em um tom irônico, saltando da carruagem com a graça e a despreocupação típicas de uma ascendente.
— Se você não os tratar como deuses, talvez eles não te tratem como menor — respondi.
— Justo.
O recepcionista nos saudou pelo nome e indicou o caminho. À frente, Kayden havia parado, tendo nos ouvido chegar.
Entramos no grande salão, que se mantinha praticamente inalterado. O mármore cortado no chão, as escadas de ferro negro… mas nenhum afresco, notei. Antes, uma imagem de Agrona cobria todo o teto; uma representação enganosa onde ele doava poder ao povo de Alacrya. Não pude evitar me perguntar se Arthur teria sentido a tentação de substituí-la por uma imagem sua. Antigamente, eu diria que não… mas se o poder corrompe…
— Kayden — cumprimentei, ao nos aproximarmos. Apertei seu antebraço, e ele nos retribuiu com um aceno respeitoso.
— É culpa sua eu estar aqui? — perguntou, com um fingido mau humor. Ou ao menos, presumi que fosse fingido. Sempre era difícil saber o que ele pensava. — Duvido que te irritei tanto no curto tempo em que trabalhamos juntos na Academia Central a ponto de me punir assim.
Do outro lado, Maylis lhe ofereceu o braço, que ele aceitou com certo alívio.
— Foi ela quem me arrastou até aqui, então não duvido nada que tenha tramado sua vinda também — disse ela.
— Sem que isso soe como desdém à sua posição ou capacidade, Kayden… não, não fui eu quem providenciou sua presença — falei, com a máxima polidez que consegui reunir.
O rebelde apenas riu e começou uma ladainha de queixas que durou até encontrarmos a câmara onde nossa reunião — uma palavra modesta para tal confluência de figuras poderosas — teria lugar. Um outro atendente já nos esperava para abrir as portas.
No interior, havia uma sala de tribunal rebaixada, em forma de anfiteatro oval. Um palco ocupava a porção central mais baixa, cercado por fileiras largas de assentos acolchoados que se elevavam em degraus.
Os representantes de Dicathen já haviam chegado e estavam reunidos do outro lado do recinto.
Reconheci de imediato os nobres anões, Carnelian Earthborn e Durgar Silvershale. Uma mulher anã de cabelos grisalhos estava com eles, braços cruzados e faces rubras franzidas em uma expressão de desagrado. Naturalmente, conhecia os elfos Virion e Tessia Eralith. Um terceiro elfo, cujo rosto me era familiar, mas cujo nome me escapava, conversava discretamente com uma mulher humana que destoava do ambiente, talvez pela ausência de adornos nobres, comuns a todos os outros. Sentavam-se ao lado dos nobres humanos, Curtis e Kathyln Glayder.
Mais acima, separados dos demais, estavam Mica Earthborn e Varay Aurae. Uma jovem de olhos vermelhos se mantinha ligeiramente afastada deles.
— E eu achando que representaria Alacrya sozinho — disse uma voz rouca próxima à entrada, forçando-me a olhar.
Sorri diante de Alaric, vestido com roupas refinadas como as de um comerciante abastado.
— Darrin te forçou a renovar o guarda-roupa, pelo que vejo.
Ele bufou, puxando a túnica escura com desdém.
— Na verdade, foi aquele mentor seu. Insistiu que eu parecesse à altura se fosse me misturar com os poderosos.
— Ah, o infame Alaric Maer — disse Kayden, estendendo a mão com um sorriso. Alaric a apertou com firmeza. — Que bom revê-lo.
Uma das sobrancelhas de Alaric arqueou.
— Já nos conhecemos?
Kayden deu de ombros e começou a descer os degraus com certa dificuldade.
— Quem sabe.
— Falando em Seris — comecei, num tom investigativo, acompanhando Kayden. Maylis o segurava com firmeza pelo braço, amparando sua perna ferida.
— Está aqui — respondeu Alaric, olhando ao redor como se ela estivesse oculta em meio à pequena multidão. — Esperando nossos convidados ilustres, creio eu — continuou lançando-me um olhar cúmplice. — E nosso amigo Grey? Alguma notícia?
Balancei a cabeça.
— Nenhuma.
Ele assentiu antes de se sentar perto de Kayden e Maylis. Fui a única a atravessar a câmara até os representantes de Dicathen.
Virion levantou-se para me receber no meio do caminho. O velho elfo usava um sorriso cansado, mas sincero, e me cumprimentou calorosamente, segurando minhas mãos entre as dele.
— Virion. Espero que a jornada não tenha sido árdua?
Ele soltou uma risada, bagunçando os cabelos, ainda desalinhados apesar da tentativa de ajeitá-los.
— Um voo longo de fênix, mas podia ter sido pior.
Retribuí com um sorriso largo.
— Não quis se aventurar pelas Relictombs? Ouvi dizer que nossa Espiral conecta-se à sua.
Ele resmungou, erguendo uma sobrancelha e observando os arredores como se absorvesse toda a vastidão do primeiro nível, além do tribunal.
— Acho que é melhor deixar isso para os mais jovens e dispostos.
— E onde estão essas fênix?
— Por aí — disse ele dando de ombros. — Mordain ficou ansioso para explorar mais da Espiral antes da reunião. Acho que ele também está nervoso com a ideia de encarar os outros asuras, embora eu não me arrisque a tentar entender os sentimentos de um ser superior.
Notei sua mão deslizar até o quadril, massageando-o como se doesse. Apontei os assentos e perguntei:
— Quer se sentar?
Ele me lançou um olhar envergonhado, mas grato, e nos sentamos para conversar enquanto aguardávamos os demais. Ele me indicou quem eu não conhecia, explicando quem eram e qual papel exerciam. Embora eu evitasse tocar diretamente no nome de Arthur, Virion percebeu minha curiosidade velada e apenas balançou a cabeça, admitindo não saber mais do que eu.
Pelo canto do olho, vi Tessia Eralith se desvencilhar de outra conversa e se aproximar. A jovem elfa estava deslumbrante num vestido esmeralda de corte nobre, com brocados prateados que refletiam o tom de seus cabelos. Contudo, sob o brilho e o polimento, não pude deixar de notar que ela parecia profundamente exausta.
— Então, você viu tudo isso em tempo real — comentei após trocarmos cumprimentos educados e ela se sentar ao lado do avô. — Foi algo impressionante de se ver à distância. Não consigo imaginar estar no meio de tudo aquilo.
Um olhar distante nublou os olhos de Tessia, e ela permaneceu em silêncio por alguns segundos antes de responder:
— Queria poder descrever, mas a realidade foi muito mais estranha do que qualquer palavra poderia expressar.
Esperei que ela continuasse. Quando não o fez, perguntei:
— E Arthur… está se recuperando bem, espero? Uma façanha dessas deve tê-lo deixado em frangalhos.
Tessia empalideceu ao ouvir minhas palavras. Embora eu apenas me referisse ao cansaço, um medo sombrio se agitou dentro de mim.
A conversa morreu. Em vez de falar, limitamo-nos a observar os outros convidados chegando, um a um.
Logo após Maylis e eu, Augustine Ramseyer e Matrona Amellie Bellerose entraram juntas, seguidas por Harlow Edevane, outrora Alto Mago do Salão dos Ascendentes de Nirmala.
Surpreendi-me ao ver a Alta Juíza Seraphina Desmarais, la líder de cabelos flamejantes do sistema judicial das Relictombs, pois seu nome não constava na lista de participantes que recebi. Embora não a conhecesse pessoalmente, sua reputação a precedia, incluindo o fato de ter apoiado Arthur quando os Granbehls tentaram subornar os tribunais contra ele, e eu tinha certeza de que sua voz seria bem-vinda.
Quando Uriel Frost entrou no tribunal, um nó desconfortável apertou meu estômago.
— Com licença — falei a Virion e Tessia, antes de subir aos degraus superiores para encontrá-lo na porta. — Uriel. Não tinha certeza se viria. Fico feliz que tenha vindo, pois… — engoli em seco antes de continuar — lamento pelo que aconteceu com Enola. Ela era uma jovem maravilhosa, uma maga brilhante. Dói saber que ela se foi.
Ele me fitou por um longo instante.
— Sim. Bem. Acho que hoje temos a chance de garantir que o sacrifício dela tenha valido a pena. — Então passou por mim, dirigindo-se aos outros Alacryanos reunidos.
Voltei a observá-lo partir, a culpa me corroendo por dentro. Enola me ajudou na batalha; se não tivesse vindo me ajudar, talvez ainda estivesse viva. E talvez eu estivesse morta, mas esse raciocínio não leva a lugar algum.
Pouco depois, Mordain Asclepius retornou à câmara, com uma coruja verde de chifres pousada em seu ombro. Fiquei surpresa ao vê-lo sozinho, sem outros de seu clã. Ao menos esperava que Chul o acompanhasse, para que eu pudesse questionar o meio-fênix sobre Arthur. Mordain cumprimentou educadamente todos os presentes, mas de modo formal e reservado, e logo se isolou numa das laterais.
Virion estava certo, pensei. O fênix parecia nervoso.
Notei que, minutos depois, Tessia se afastou de Virion para sentar-se junto a Mordain. Conversavam em vozes baixas, que não alcançavam onde eu estava, próximo à porta, no nível mais alto dos assentos.
O murmúrio baixo das conversas cessou quando sentimos, coletivamente, a aproximação de assinaturas de mana de poder avassalador.
O recepcionista recuou da porta, e todos os demais permaneceram imóveis em seus lugares. Dei um passo no corredor, e fui recebida por uma visão surreal.
Vários asuras se aproximavam em uma procissão majestosa. Vestidos gloriosamente em um arco-íris de cores e tecidos fluidos que eu sequer podia nomear, eram, no entanto, as próprias figuras que se destacavam. Fixei o olhar numa mulher alienígena, pequena, de pele azul clara, que caminhava pelo corredor de cabeça para baixo, observando com intenso interesse as pedras do chão.
Seris liderava a comitiva, consolidando a presença dos asuras em minha mente. Ela acenou levemente ao nos cumprimentar.
— E aqui está uma das outras representantes alacryanas. Caera Denoir, dê as boas-vindas aos grandes senhores e à legião de seus herdeiros.
Sem apresentá-los formalmente, ela entrou rapidamente no tribunal à frente deles, começando a anunciar os nomes em voz alta à medida que passavam, um a um. Alguns me cumprimentaram com acenos respeitosos, outros apenas sorriram em reconhecimento breve, enquanto alguns poucos entraram com confiança, quase sem olhar na minha direção.
Os alto lordes — um representante de cada raça asura, exceto os dragões — ocuparam a fileira mais alta em uma seção desocupada. Os herdeiros, que presumi serem mais jovens, acomodaram-se nas fileiras da frente.
Somente após todos entrarem, segui e retornei à seção alacryana, sentando-me ao lado de Maylis.
Ela inclinou-se para sussurrar em meu ouvido:
— Não sei o que esperava, mas… — Ela parou, levantando as sobrancelhas numa expressão de surpresa e confusão.
Seris desceu até a pequena plataforma central. O silêncio era absoluto enquanto ela fitava o salão, começando e terminando seu olhar pelos alacryanos.
— Bem-vindos, representantes de Dicathen, Alacrya e Epheotus. Estamos juntos pela primeira vez, e em tempos absolutamente sem precedentes.
Do outro lado da câmara, notei alguns asuras encarando Mordain, que se sentava sozinho com Tessia no banco mais baixo.
— Fomos escolhidos por nossos pares para defender as necessidades de nossos lares e povos — prosseguiu Seris. — Para nos alinharmos quanto à forma de nosso novo mundo compartilhado. Para assegurar que as chamas da guerra sejam apagadas, e não acendam novamente. Estamos aqui como representantes de nossos povos, e como iguais entre nós. Não como autoritários para exigir, mas como vizinhos para acordar.
Eu já observava os asuras, pois achava difícil desviar os olhos deles, e vi claramente quando alguns trocaram olhares incertos… e, mais preocupante, sombrios. Não acreditava que todos estavam ansiosos ou prontos para se colocarem em igualdade com aqueles que, provavelmente, chamavam de “menores” não muito tempo atrás.
— Por que o exilado está aqui? — perguntou a asura etérea e flutuante, Nephelle Aerind, em um tom melodioso e inquisitivo.
Antes que Seris pudesse responder, Tessia Eralith levantou-se. Ela subiu os degraus dos assentos, posicionando-se em uma fileira mais alta, encarando os asuras sem hesitação.
— Mordain do clã Asclepius defendeu Dicathen com bravura nos últimos dias. Ofereceu sua amizade aberta e sinceramente, sem esperar nada em troca. Por mais tempo do que qualquer um de nós esteve vivo, ele e seu povo compartilharam nosso continente em silêncio, e hoje ele deve ser considerado um representante de Dicathen, assim como qualquer um de nós.
O asura de pele escura e cabelos alaranjados esfumaçados chamado Novis Avignis se inclinou e falou com seu vizinho, que Seris havia chamado de Rai Kothan. Senti os pelos da nuca se eriçarem com o tremor agitado de suas assinaturas de mana.
Foi Novis quem se levantou. Ele encarou Mordain com uma mistura de apreensão, raiva e esperança.
— Aceitamos a presença do clã Asclepius e estamos prontos para ouvir nosso irmão perdido. Talvez em local mais apropriado, quando as obrigações atuais forem cumpridas. — Sua voz suavizou, tornando-se menos formal. — Mordain, meu velho amigo. Estou… feliz em te ver. Por favor, visite-nos no Ninho Passo de Pluma nos próximos dias.
A tensão se dissipou de Mordain, e ele pareceu brilhar com uma luz interna. Tessia apertou sua mão em apoio, inclinando-se para falar com ele em voz baixa. Franzi o cenho ligeiramente, achando sua proximidade tanto interessante quanto, se fosse honesta, preocupante. Apesar do que dissera a Maylis, era, sim, parte de nossa responsabilidade compreender as necessidades e fraquezas uns dos outros, e ver o laço estreito que se formava entre o clã fênix rebelde e os elfos alterava a dinâmica de poder na sala.
— Agora, talvez possamos começar — disse uma mulher anã chamada Stoya, como Virion me informou, com seu forte sotaque vildoriano. — Há muito o que discutir, e uma jornada terrivelmente longa de volta, especialmente com os portais de teletransporte inoperantes.
— Acho justo começarmos com algumas garantias — acrescentou Amellie Bellerose. Apesar da idade, sua voz era forte e ecoava pelo salão, mesmo sem se levantar. — As ações de Agrona são dele e somente dele. Este… ataque que arrastou Epheotus para nosso mundo, ou seja lá o que aconteceu, foi tanto um ato de guerra contra o povo alacryano quanto contra vocês, asuras.
“Eu, ao menos, gostaria de ouvir da fonte que estamos seguros contra retaliações ao clã Vritra. Eles estão todos mortos agora, não é?” — concluiu com um aceno firme, como se encerrasse qualquer discussão.
Rai Kothan se levantou, seus olhos vermelhos ardentes. Era inquietante ver um basilisco que não pertencia ao clã Vritra. Por toda a minha vida, os Soberanos representaram uma faca de dois gumes de terror e do poder. Instintivamente, e talvez injustamente, senti antipatia por esse lorde.
— Um soldado não pode se esconder atrás da desculpa do dever — começou, uma amargura profunda impregnando sua voz. — E o sangue ardiloso dos Vritra corre nas veias de todo alacryano. Os crimes cometidos aqui…
— Pai — interrompeu urgentemente o basilisco mais jovem, Riven, segurando o braço do pai. — Já falamos sobre isso. Essas pessoas são…
Levantei-me subitamente, surpreendendo até a mim mesma.
— Você está certo, Lorde Kothan. — Havia um leve tremor em minha voz. Tomei um momento para me recompor, recorrendo às longas horas de treinamento. — Todo alacryano nasceu em uma máquina de guerra. Somos bucha de canhão ou armas, e é tudo o que nossos líderes basiliscos sempre viram em nós.
Uriel Frost franziu o cenho, enquanto Harlow Edevane fitava as próprias mãos, triste.
— E ainda assim, quem aqui sofreu mais nas mãos de Agrona do que seu próprio povo? — Deixei meu olhar varrer a câmara sem vacilar. — Como não lutar quando o preço da recusa é a destruição de tudo o que amamos? — Foquei em Tessia. — Havia uma jovem chamada Circe. Quando recebeu sua primeira runa, foi nomeada Sentinela, separada da família e enviada a uma escola militar. Deixou para trás um irmão mais novo, fraco e doente.
“A única forma de ajudar seu irmão era provar seu valor na guerra. Ela liderou desesperadamente um grupo de guerreiros alacryanos pela Floresta Elshire, traçando um caminho até Elenoir. Seu objetivo não era matar elfos, mas salvar seu irmão. — Baixei a cabeça. — O sucesso dela foi o ponto de virada da guerra, resultando na morte de milhões de elfos. Mas, neste momento, há um menino lá fora, ainda vivo.”
A câmara estava silenciosa como um cemitério. Não recuei quando Tessia Eralith me encarou.
— Ninguém culparia qualquer dicathiano aqui por odiá-la, mas ela nunca teve escolha sobre o rumo da própria vida, e sua decisão foi algo que qualquer um de nós tomaria em seu lugar. Isso de forma alguma justifica os crimes de guerra — meu foco voltou a Lorde Kothan —, mas é crucial atribuir esses crimes àqueles que realmente os cometeram.
— Foi um dos retentores de Agrona quem tirou a vida da minha prima Alea — falou a elfa Saria Triscan, quebrando o silêncio. — Mas não foi um retentor, nem mesmo uma garota alacryana, quem destruiu nossa terra natal e assassinou milhões de nosso povo. Foi um asura.
— E esse ato o matou! — Ecoou uma voz aguda pela sala, fazendo trepidar os lustres de ferro forjado que sustentavam artefatos de iluminação acima de nós. Um asura muito alto, de múltiplos olhos, ergueu-se abruptamente, liberando uma onda de mana. Ademir Thyestes, líder dos panteões, parecia capaz de encarar todos na sala com seus seis olhos. — E, como a garota de que falam, era um soldado. Alguém que dedicou mais anos ao serviço de seu senhor do que toda a sua raça existiu! E também seguia ordens de um homem morto.
— Todos temos sangue em nossas mãos.
Todos os olhares se voltaram para Virion, que levantou-se e caminhou até a plataforma central, onde Seris permanecia em silêncio até então.
— Cada facção nesta sala feriu outra — afirmou. — Elfos lutaram contra humanos e anões em longas e amargas guerras. Cada um dos Domínios representados esteve, em algum momento, em conflito com seus vizinhos; ou pelo menos é o que me disseram. E entre os asuras, não houve um conflito terrível entre dragões e fênix, não muito tempo atrás, pelo menos seguindo sua contagem?
Ele caminhou em um pequeno círculo, contornando uma Seris imóvel, sem nos olhar, mas fitando um ponto distante.
Perto dali, Seraphina Desmarais murmurou algo para Augustine Ramseyer, questionando a identidade de Virion.
— Se insistirmos em buscar retaliação pelos crimes de homens mortos, a luta nunca terá fim, e, em vez de civilizações prósperas, nossos herdeiros rastejarão por escombros devastados pela guerra, conhecendo apenas morte e batalha. — Finalmente, ergueu o olhar. Lançou a Saria Triscan um olhar gentil, mostrando que não guardava rancor por suas palavras, e então voltou seu foco aos asuras. — Devemos a nós mesmos algo melhor. E àqueles que dependem de nós, e aos que virão depois. Arthur Leywin não salvou nossas três terras para que nos voltássemos uns contra os outros agora, logo após sua vitória.
A menção ao nome de Arthur silenciou o salão, como um sedativo.
Uma jovem dragão de cabelos rosados, anunciada como Vireah, do clã Inthirah, levantou-se e lançou a Ademir um olhar conciliador.
— Muitas coisas foram feitas em nome de Epheotus e dos asuras que nunca soubemos e certamente não aprovamos. Para a maioria de nós, o velho mundo foi relegado a lendas antigas. Não é desculpa, claro, mas fomos propositalmente mantidos na ignorância sobre seu mundo.
A herdeira leviatã de aparência feroz, Zelyna, levantou-se em seguida, seus cabelos ondulando como se capturados por uma correnteza forte.
— Kezess Indrath manteve em segredo muito do que fez aqui, até mesmo dos outros grandes lordes dos Grandes Oito. Seus crimes contra vocês são terríveis, e, se o clã Eccleiah puder ajudar na reconstrução, o faremos. Mas não carregaremos o peso de todos os crimes de guerra de um dragão morto.
— Como é fácil para alacryanos e epheotanos alegarem ignorância e inocência — gritou Durgar Silvershale, socando com força o assento ao seu lado. — Então todos os seus crimes do passado devem ser perdoados simplesmente porque seus antigos líderes estão mortos? Líderes que vocês seguiram? Não faz tanto tempo que o rei e a rainha dos anões traíram Darv para Agrona, e muitos de nós lutamos contra esse ato de traição! Cada homem e mulher é responsável por suas decisões, ordens ou não!
Houve algum apoio ríspido do lado dicathiano, enquanto os alacryanos ao meu redor caíram em silêncio. Pessoalmente, sentia que todos os lados tinham argumentos válidos, mas nenhum deles avançaria no propósito daquela reunião. Só o tempo e a boa vontade construiriam a confiança necessária entre dicathianos, alacryanos e os asuras de Epheotus.
O murmúrio cessou quando Morwenna Mapellia, alta como uma árvore, interrompeu:
— Kezess Indrath não é o monstro que tentam pintar. Ele protegeu nossos mundos desde antes de qualquer uma de suas espécies inferiores sequer existir, e temo pensar o que nos acontecerá agora que toda a força de Epheotus está plenamente neste reino.
— Ele era um lunático genocida — murmurou Kayden.
— Pelos relatos, um megalomaníaco brincando de deus! — retrucou Stoya, cruzando os braços e encarando os asura sem medo. Stoya retrucou, cruzando os braços e encarando os asuras sem medo.
— Basta!
A palavra caiu como o machado de um carrasco, cortando o ar e deixando o silêncio em seu rastro.
O titã, Radix Grandus, levantou-se, dobrando de tamanho entre uma respiração e outra. A mana se comprimiu ao seu redor, apertando a câmara como um grilhão.
Ao inspirar para continuar seu brado, o ar mudou. Foi algo sutil, mas o fôlego escapou dos pulmões de Radix, e o que quer que ele pretendesse dizer foi embora junto. O titã virou a cabeça, procurando algo enquanto retornava ao tamanho anterior.
Ao meu redor, todos faziam o mesmo.
Tessia foi a primeira a vê-lo, e segui sua linha de visão até um alçapão sombrio na parede externa. Mesmo à distância, podia ver o sutil tom dourado de seus cabelos e olhos nas sombras.
Arthur emergiu para a luz com uma elegância casual, vestido simplesmente com calças folgadas e uma camisa comum.
Os asuras mais velhos acenaram respeitosamente para Arthur, enquanto os herdeiros mais jovens exibiam sorrisos amigáveis, tingidos de preocupação.
A reação à sua aparição entre nós, “menores”, foi mais variada. Ao meu redor, os alacryanos próximos se mexeram desconfortáveis. Alaric sorria para Arthur, articulando silenciosamente “Exibido”, mas a maioria parecia visivelmente inquieta com sua presença.
Do lado oposto, fiquei surpresa ao notar a mesma reação cautelosa dos dicathianos. Curtis e Kathyln Glayder trocaram um olhar que expressava claramente sua preocupação, enquanto os anões se calaram e se retraíram. As Lanças, companheiros de Arthur, ergueram-se respeitosamente, sem os sorrisos acolhedores dos jovens asuras, mas também sem a tensão presente em tantos outros rostos.
A dicathiana de olhos vermelhos sorriu para Arthur e balançou a cabeça levemente, como se compartilhassem uma piada interna.
O olhar mais revelador, porém, foi o de Tessia, cujas feições sérias se derreteram em surpresa úmida, antes de se abrirem em alívio.
— Estou atrasado? — perguntou Arthur, sua voz suave, mas ressoando facilmente no silêncio absoluto. Seus olhos dourados se voltaram para a fileira de jovens asuras. — Os últimos dos que estavam escondidos na dimensão de bolso de Myre foram resgatados há pouco, incluindo minha mãe e irmã.
Uma onda de alívio passou pelos asuras, mas nenhum deles falou.
— Vocês já podem parar de me olhar como se esperassem que eu tenha todas as respostas — disse momentos depois, agora se dirigindo à câmara como um todo. — Dei a vocês uma chance, mas agora cabe a todos aproveitarem essa oportunidade.
Ademir Thyestes quebrou o feitiço de silêncio que pairava sobre a câmara, dizendo:
— Alto Lorde Arthur, da raça arconte. Você forjou este novo mundo, para o bem ou para o mal. Não compreendo como o fez, e é exatamente por isso que apoiaria sua liderança. Não assumirá o vazio deixado por Kezess para garantir que sua visão se realize?
Olhe o estado dele, idiota, pensei, ficando irritada por Arthur. Ele está cansado. Exausto. A palavra “despedaçado” voltou à minha mente, e pensei ter entendido a reação anterior de Tessia.
Entretanto, apesar de sua evidente fadiga, Arthur não se irritou com o outro lorde asura.
— Estou surpreso, Ademir. Esperava que você, mais que todos, se opusesse exatamente a isso, e creio que sabe o porquê. O mundo agora é grande demais para reis. O reinado de Kezess era eterno e inflexível. O que o mundo precisa agora é de uma variedade de ideias e vozes para representar o novo cenário de sua população. Ninguém, sozinho, pode compreender a profundidade e a extensão de tamanha diversidade de povos. É por isso que todos vocês estão aqui hoje. Devem traçar o caminho para seus povos juntos. Encontrar uma maneira de trabalhar em conjunto, de manter a paz, e de construir suas nações lado a lado, não às custas umas das outras.
Mais uma vez, o silêncio inebriante permaneceu após as palavras de Arthur.
Vendo a oportunidade, levantei-me.
— Para construir sobre o que Arthur disse, gostaria de discutir um novo tipo de governança. — Olhei ao redor, esperando que os rostos se desviassem de Arthur para mim. — Um onde todas as vozes sejam ouvidas igualmente, onde cada vila e cidade em cada Domínio possa garantir sua representação e que suas necessidades sejam atendidas.
Pelo canto do olho, captei um sorriso e um aceno de aprovação de Arthur. Encorajada pela atenção de todos os representantes reunidos, comecei a explicar em detalhes o sistema que discuti com Maylis durante nossa longa jornada até as Relictombs.
Quando olhei novamente em sua direção, Arthur havia desaparecido.