Lançamento julho 18, 2025
POV ARTHUR LEYWIN
Meus canais se romperam, e minha pele jorrou sangue. Meus ossos fraturaram, meu sangue ferveu. E ainda assim, mantive minha mente totalmente focada na tarefa, pairando distante, protegida de mim mesmo. Eu sentia a dor, sabia que ela estava ali, mas aquele instante era precioso demais para me perder em algo tão pequeno quanto o colapso do meu corpo físico. Um único fio da minha consciência isolava toda a agonia, mantendo-a a uma distância segura, enquanto minha mente pairava acima de tudo, observando o tsunami de éter se espalhar pela atmosfera.
Meu núcleo de três camadas, brilhando fraco como um membro sobrecarregado, mal conseguia conter a torrente de éter liberada pela ruptura da quarta camada. Os portões incrustados no núcleo, que o ligavam aos meus canais, tremeluziam inutilmente, e os canais estavam devastados. Era preciso o esforço total da minha consciência amplificada pelo Gambito do Rei, com exceção daquele único fio que mantinha a dor à parte, para controlar tamanho poder. Com isso, estendi minha vontade para cima e para baixo, todas as minhas runas divinas trabalhando em plena harmonia.
A informação começou a fluir em minha mente a partir de Ji-ae, através da recém-formada conexão com Tessia. Vi a forma de Epheotus e das Relictombs, compreendi as leis necessárias — física, termodinâmica, expansão e contração espacial, a trama do tempo, o pulsar quente da vida — tudo o que era exigido. Acima de mim, a fenda se alargava rapidamente, e a descida de Epheotus acelerava de forma alarmante.
O portal abaixo começou a se desdobrar, derramando o conteúdo das Relictombs conectadas, enquanto a primeira zona era puxada do vazio para o mundo físico. O portal tremia, estressado por duas forças opostas: o dilúvio de éter causado pelo sacrifício da minha camada de núcleo, e o rio etéreo do outro lado, à beira de transbordar. Um pátio — parte da primeira zona — se despedaçou sob o peso da gravidade, apenas para se reconstruir em novas formas, dobrando-se como papel ao vento.
A Destruição se acendeu junto com o restante das minhas runas divinas, quando Regis ligou seu domínio da runa ao meu insight sobre ela. Fluxos de chamas violetas dançavam pelos caminhos etéreos e dentro do espaço em transformação.
A runa divina espacial abriu o Taegrin Caelum como uma casa de bonecas, enquanto as novas estruturas advindas das Relictombs se assentavam nos vazios deixados. Tudo que era supérfluo era reduzido ao nada pela Destruição. O espaço se contraía e expandia conforme necessário. Caminhos etéreos entrelaçavam o novo ao antigo. O tempo tremia em saltos irregulares, enquanto as Relictombs se ajustavam à passagem do tempo real.
Ruas se desenrolavam para fora do portal, se destruindo e reconstruindo. Edifícios ruíam e renasciam sob as pressões contrárias da runa espacial e do Réquiem de Aroa. A Destruição podava incessantemente aquilo que eu não podia aproveitar, enquanto eu mantinha toda a forma em minha mente como uma planta tridimensional com profundidade temporal — um projeto de quatro dimensões.
No coração do caos, onde as Relictombs se desdobravam e remodelavam como um barquinho de papel, houve gritos. Eram as vozes de todos os que estavam confinados lá dentro. Dezenas, depois centenas, agarrando-se ao que fosse sólido, cada um envolto num casulo protetor de espaço e tempo.
O Gambito do Rei ameaçava ceder diante do esforço mental exigido. Ainda me observando de cima, vi meu corpo tossir sangue. Meu corpo, em frangalhos, tingido de escarlate; as mãos de Tessia escorregadias com o sangue que escorria livremente da minha pele. Suas lágrimas se misturavam ao sangue que fluía de seu próprio nariz.
Endureci o foco, reunindo os galhos da estrutura enquanto lutava para reabsorver meu próprio éter, tentando fortalecer ainda mais a runa divina.
Teria sido mais fácil se tivéssemos tempo para esvaziar completamente as Relictombs, encerrar todas as ascensões e remover as pessoas dos dois primeiros níveis. Em vez disso, elas estavam abarrotadas de refugiados, fugitivos do ataque final de Agrona.
Como em cada etapa deste processo, precisei me guiar pela maior chance de êxito. Salvar as pessoas das Relictombs seria como passar ervilhas pelas lâminas giratórias de uma colheitadeira. O tempo, a paciência e a energia exigidos eram um preço que eu ainda não conhecia, assim como Epheotus.
Tentar salvar todos ao mesmo tempo talvez fosse exatamente o motivo de não salvar ninguém… Ouviu-se um estalo ensurdecedor acima. Epheotus havia avançado demais, depressa demais, sem apoio suficiente, enquanto minha atenção permanecia nas Relictombs.
O Gambito do Rei me isolava da dor e do medo. Uma nova percepção floresceu no sangue, crescendo como flores ao longo dos ramos em expansão. Era isso. O propósito da runa divina. Um sacrifício verdadeiro. Até então, ela estivera contida pela minha relutância em abrir mão de mim mesmo. Aqui, no entanto, agora, isso era impossível. O preço por salvar as Relictombs, Epheotus, os asuras e os alacryanos só poderia ser… eu.
E eu já havia começado.
Meu corpo era dilacerado de dentro para fora. Minha mente, arrancada do invólucro. Meu núcleo, luminoso e exposto, reduzido a três camadas ao redor de um núcleo orgânico de mana em ruínas. Eu precisava ir além. Separar-me por completo.
À medida que o entendimento se desdobrava em minha mente como as Relictombs emergindo do portal, cada ramo do Gambito do Rei se dividia em outro, e cada novo galho brotava mais um, até que toda dor e preocupação, já distantes, se dissolveram num ruído de fundo sem importância. Minha consciência se expandia ao longo desses ramos, abarcando em si a totalidade dos caminhos etéreos, ligando cada ponto a todos os outros, tanto os já fixos no tecido do mundo quanto aqueles que apenas agora se formavam, como sinapses cintilantes através do continente em queda.
O próprio mundo pareceu prender a respiração, e dentro daquele vento morno, vi os fios dourados que uniam tudo. Eu estava no centro, inumeráveis fios se entrelaçando ao meu redor e se estendendo até cada elfo, anão, humano, alacryano e asura, em ambos os mundos. Meu corpo desapareceu, engolfado numa silhueta humanoide de fios dourados, intensamente entrelaçados e resplandecentes.
A respiração voltou, e os fios desapareceram de vista.
No céu acima, Epheotus já não se desintegrava, sustentado agora por um anel de éter puro. A terra, como as Relictombs, se condensava e remodelava sob meu comando, como argila moldada pelas mãos de um oleiro.
A Destruição dançava pelos caminhos etéreos, deslizando sobre sua superfície e consumindo com precisão cirúrgica.
Quilômetro após quilômetro de Epheotus caía através da fenda, à medida que o bolsão espacial expandido onde existiu por tanto tempo se colapsava. Tive apenas segundos para me adaptar ao processo antes que ele tivesse de mudar novamente, e a cada avanço, tornava-se mais complexo.
— Deixe-nos ajudar — disse Sylvie, firme, percebendo minha tensão. Como Tessia, suas mãos estavam tingidas com meu sangue.
Abri a boca para responder, mas nenhuma voz saiu.
— Só preciso… de um pouco mais de tempo.
Sylvie assentiu. Fechou os olhos com força. E então, poder e éter, manifestando-se por meio de suas artes aevum, estenderam-se pela face do mundo, abrandando o tempo até que este escorresse como mel.
Uma força contrária reagiu. Sylvie arfou quando o feitiço se quebrou, estilhaçando-se e enviando um calafrio nauseante por minha espinha.
— O quê…? — Ela murmurou, sem fôlego.
Algo se aproximava. Uma tempestade de mana e éter, mal contida. Descendo de Epheotus.
— Myre — falei, o nome áspero em minha garganta.
Quase todo o meu éter estava fora do corpo, moldando Epheotus acima e as Relictombs abaixo com mãos metafísicas. Por isso não me curava. Regis absorvia o necessário para ativar a Destruição e me permitir canalizá-la, mas eu guardava apenas o mínimo para manter meu corpo devastado vivo. E agora, eu lutava para reunir o suficiente e nos proteger.
Se Myre atacasse…
— Arthur Leywin! — Sua voz retumbou pela atmosfera, profunda, ressonante, e carregada de dor. — Senti a morte de Kezess, mas preciso saber… Como ele morreu? Foi Agrona? — Suas palavras vinham afiadas, mas com uma súplica velada.
Olhei para a fogueira que ardia por trás de seus olhos, incapaz de sentir medo.
— Eu o matei.
Houve uma longa inspiração, como o prenúncio de uma tempestade, antes que ela respondesse, a voz trêmula.
— Trouxemos você para entre nós. Tratamos você como um dos nossos. Treinamos e elevamos você. Abrimos os lugares mais sagrados. Fizemos de você um de nós. E é assim que você retribui? Matando o homem que por tanto tempo manteve este mundo seguro? — Notavelmente, percebi, ela não perguntou o motivo.
Myre completou sua descida, flutuando como uma folha levada pelo vento. Seu rosto era uma tempestade, seus olhos dois raios prestes a cair.
— Vovó! — gritou Sylvie, posicionando-se entre nós. — Você sabe que ele não teve escolha. Sabe melhor do que ninguém as decisões que Kezess tomou e tomaria novamente. Mas se você não nos deixar trabalhar, todos que ainda estão aqui vão morrer. Inclusive o seu povo. A morte de Kezess não significará nada!
Quanto mais Myre se aproximava, menor ela parecia. Já não era a jovem rainha reluzente que vi ao lado de Kezess no trono, nem tampouco a anciã severa que conheci no passado. Ela parecia antiga — ancestral —, mas indomada. Como uma divindade esquecida. E foi naquele instante que compreendi, talvez pela primeira vez, por que um dia consideramos os asuras como deuses.
Apesar de tudo pender na beira de uma lâmina, eu não podia parar. Todo o primeiro nível das Relictombs já havia atravessado o portal, agora com mais de sessenta metros de altura. Utilizando o éter para manipular a abundância de mana da terra, extraí pedra das próprias montanhas, envolvendo e preenchendo o lado aberto de Taegrin Caelum, formando a base do edifício. Ao longe, ouvia os clamores e súplicas das pessoas que acabara de deslocar.
Epheotus era mais difícil. Precisava que Sylvie retardasse sua entrada neste mundo, pois a formação exigia precisão. Os cálculos de Ji-ae estipulavam uma faixa de terra com exatamente cento e duzentos e trinta e um quilômetros de largura. A borda já havia ultrapassado as Montanhas Presas do Basilisco e se aproximava da costa leste de Alacrya, e eu tinha apenas momentos para completar a segunda das três divisões que seriam necessárias para salvar Epheotus.
— Me sentindo… esticado demais, cara — pensou Regis. Ele e Sylvie não tinham escolha a não ser coexistir dentro da teia do Gambito do Rei, embora precisassem manter distância mental, ou suas mentes se romperiam tentando acompanhar todos os meus pensamentos.
Myre estava diretamente na nossa frente agora, embora eu não tivesse notado sua aproximação. Seus olhos repousaram sobre meu estado: o sangue, o voo trêmulo, o pouco éter sustentando meu corpo físico. Este seria o momento em que eu descobriria quem ela realmente era. Quem ela escolheria ser.
— Você está se matando — disse ela, rouca.
Arrependimento… ou alívio? Não soube dizer.
— Não seria… a primeira vez — respondi, com dificuldade.
Seus olhos desviaram para Tessia e depois repousaram em Sylvie.
— Sinto muito, filha da minha filha. Eu sei — disse, fechando os olhos e soltando um suspiro cansado. — Eu sei.
Sylvie, com o olhar firme e úmido, assentiu levemente. Então, seu poder voltou a se expandir e, desta vez, Myre não tentou detê-la. Sylvie lutava contra a tempestade de éter que eu mesmo havia desencadeado, e eu mantinha o elo entre nós com firmeza em minha mente.Não compartilhava meus pensamentos, mas a incluía em minha consciência, minha conexão com os caminhos etéreos através do God Step e as formações de Epheotus e das Relictombs pela runa divina espacial. Através de mim, seu poder alcançou os confins de ambos os mundos, e embora não parasse o tempo, ela aliviou a pressão de sua passagem, dando-me tempo para transformar informação bruta e cálculo em realidade física.
Quando a primeira faixa de terra passou sobre o litoral, busquei o ponto de transição necessário.
— Minha família? — perguntei a Myre, ainda concentrado.
— Em segurança — respondeu ela, a voz áspera sob o peso da exaustão. Esperei por mais. Quis perguntar, exigir que ela explicasse, mas sua única palavra consumiu o tempo que eu tinha antes de encontrar o que buscava, e toda a minha atenção voltou-se a Epheotus. A terra que obscurecia o céu dividiu-se quando Epheotus se tornou não uma, mas duas faixas, a segunda formando-se em um ângulo preciso de trinta e seis graus, seguindo agora em direção sudeste.
Um segundo anel exigia outra camada de éter de sustentação, um novo fluxo de Destruição e Réquiem de Aroa. A teia emaranhada que era o Gambito do Rei se tensionou ainda mais, comprimida por forças puxando-a em todas as direções.
A breve suspensão temporal de Sylvie se esvaiu de novo, enquanto ela descansava por um momento.
Ao meu lado, Tessia, ainda agarrada ao meu braço, vacilou. Sua cabeça tombou contra meu ombro revestido de armadura com força demais, abrindo um corte sobre a sobrancelha. Seus olhos estavam desfocados; ela sequer parecia notar. Apertei-a contra mim, incerto de que ainda pudesse se sustentar.
— Tess. — Tessia…?
— Estou… bem. — Seus pensamentos escorriam lentamente.
— O desgaste sobre os sistemas físicos dela é enorme — interveio Ji-ae. — Essa estrutura… o que sou agora, não foi feita para residir em um invólucro orgânico. A quantidade de informação está consumindo-a por dentro.
— Eu disse que estou bem — retrucou Tessia, erguendo a cabeça do meu ombro e se afastando, sem soltar completamente meu braço. Seu lado agora estava manchado de sangue, meu e dela.
— Eu também tô ótimo, caso alguém queira saber — ironizou Regis, com o equivalente mental de alguém cuspindo sangue.
Myre flutuou à nossa frente, o cenho franzido de preocupação.
— Deixem-me ajudar — disse, erguendo a mão antes que qualquer protesto pudesse surgir. — Eu entendo. Isso não se trata de aliança ou perdão, mas de sobrevivência. O maior preço já foi pago para dar ao meu povo um futuro. Não vou desperdiçá-lo.
Sem esperar resposta, mana rodopiou em torno de sua mão erguida, brilhante e potente. Um pouco de éter respondeu, e nossas feridas começaram a se fechar lentamente.
As sobrancelhas de Myre franziram-se ainda mais, seus lábios curvando-se em uma expressão de intensa concentração. A mana crescia… mas o éter mal reagia. Percebi que ela precisava de toda sua energia apenas para curar os ferimentos mais leves.
— Concentre-se na Tess — ordenei, entre dentes cerrados.
Ela hesitou, então voltou toda a atenção para Tessia. O sangue que escorria do nariz de Tess diminuiu, e sua expressão suavizou levemente.
Mas, assim que a pressão curativa me deixou, engasguei. Vi, do alto, meus próprios olhos revirarem nas órbitas. A pressão do reino etéreo dobrou, depois triplicou. As primeiras seções do segundo nível das Relictombs começavam a emergir pelo portal, e o edifício, uma estalagem de dois andares que ficava na borda do pátio de entrada, explodiu em escombros. Só consegui proteger as dezenas de pessoas aglomeradas dentro dela envolvendo-as em éter, no instante antes do colapso.
O chão sob seus pés rachou quando enormes vinhas esverdeadas, de um tom esmeralda vivo, irromperam para apanhá-las no ar. Tessia tremia com o esforço do feitiço, sua vontade bestial fervilhando dentro dela. Num canto da teia de pensamentos interligados, percebi que, ao puxar das Relictombs, permitia que o rio etéreo ganhasse mais liberdade, corroendo as bordas metafóricas como animais escavando as margens de um rio real. Apoiei-me contra esse peso inesperado, forçando-o de volta ao controle. Os cálculos fluindo de Ji-ae se ajustaram no meio do processo para acomodar o aumento de pressão.
Havia éter em abundância fluindo agora, jorrando do portal e das bordas de Epheotus, mas como o rio etéreo, ele tinha sua própria atração, forte demais para eu utilizar.
Eu precisava de um meio de neutralizar isso, mas estava no limite da minha concentração, esgotado demais para considerar algo novo.
— Arthur.
Olhei ao redor, confuso. Vovó Sylvia? Não, claro que não. Encontrei os olhos de Myre, tendo momentaneamente esquecido de sua presença, com a mente à beira do colapso.
— Você está me privando — disse ela, calma mas firme. — O éter mal reage a mim. Você está controlando tudo. Você… e o que quer que mais esteja aqui conosco. Essa força tentando passar com Epheotus.
Entendi. O pouco éter atmosférico que existia aqui foi absorvido e utilizado nos primeiros segundos, antes mesmo de quebrar a camada externa do meu núcleo. O único éter restante era o meu, canalizado através das runas divinas para atuar sobre as Relictombs e Epheotus. Myre, claro, não podia acessar o éter que se acumulava nas bordas do mundo, assim como eu.
— Mas ainda posso ajudá-lo, Arthur. — Seus olhos brilharam, desespero e arrependimento misturando-se com perda e aceitação.
Então, os olhos cresceram. O rosto ao redor deles se alargou, alongando-se. O pescoço se estendeu, o corpo expandindo-se rapidamente; as vestes fluídas deram lugar a escamas brancas, largas e resplandecentes. As asas se abriram atrás dela, batendo lentamente, em meio a um redemoinho de mana do atributo ar. Runas douradas brilhavam sobre seu rosto dracônico, desciam pelo pescoço longo e se espalhavam pelas asas imensas.
Encarei seus olhos, agora púrpura. As marcas douradas ao redor deles incandesceram… depois se apagaram, até desaparecerem por completo. Sua língua espetou-se, perfurando minha armadura, carne e osso. Diferente de Sylvia, ela não conseguiu perfurar meu núcleo sozinha. Eu teria que deixá-la entrar. Paralisado por um momento de terror recordado, quase a rejeitei.
Então… novamente cerrei um punho de éter em torno do meu núcleo. Enquanto o reino etéreo ameaçava romper-se e meu corpo ameaçava falhar, eu precisava de mais éter. Havia menos na terceira camada que na quarta, mas…
Cerrei os dentes, e a camada externa do núcleo se despedaçou. As feridas da última vez ainda não haviam cicatrizado, então o éter não precisou seguir pelos canais, apenas escapou pelas fissuras já abertas que marcavam meu corpo inteiro.
A língua de Myre finalmente perfurou meu núcleo, como Sylvia havia feito tantos anos atrás. Fios de fumaça dourada subiram do meu peito, crepitando com faíscas de ametista. Quando ela se afastou, o sangue do ferimento se perdeu no mar escarlate que me cobria, escorrendo entre as escamas da minha armadura relicária. Enquanto Sylvia parecia exausta e enfraquecida após transferir sua vontade, Myre de alguma forma parecia ainda mais majestosa. As runas douradas haviam se apagado, assim como o brilho púrpura em suas íris, mas o dragão branco ancestral que agora flutuava diante de mim continuava a exalar uma força selvagem e majestosa.
— Que você tenha a sabedoria para usar este conhecimento melhor do que eu em meus muitos milênios de vida, Arthur Leywin.
Senti a esfera dourada de sua vontade repousando dentro das duas camadas restantes do meu núcleo de éter, quente e reconfortante.
— Vovó…
Dessa vez, não fui eu quem falou, mas Sylvie. E, ainda assim, naquele instante, suas palavras carregavam o mesmo desespero infantil do meu eu de quatro anos, assistindo, sem compreender, Sylvia se sacrificar para me salvar de Cadell.
Não houve mais palavras. Myre se afastou no ar, mergulhando na base ainda em formação das Relictombs. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que ela estava indo atrás de Kezess. Acessando o brilho dourado de sua vontade, ativei-a.
Uma onda de energia me atravessou, e runas douradas acenderam-se sobre minha armadura e subiram pelo meu pescoço, entrelaçando-se às do Realmheart.
Senti as forças vitais dos meus companheiros, da própria Myre e das poucas milhares de pessoas que já haviam sido trazidas das Relictombs, amontoadas como wogarts no novo anel físico da estrutura emergente. Com um giro no espaço, abri caminho até o que antes havia sido o relicário de Agrona.
Grande parte da energia liberada pela terceira camada do meu núcleo ainda pairava ao meu redor, embora o grosso já tivesse fluído pelos canais de éter para sustentar minhas runas divinas, tanto acima quanto abaixo. Puxei esse poder para mim, guiando-o ao propósito de me curar.
A força vital de Tessia estava fraca, seu pulso lento, embora a mana ainda vibrasse com intensidade. Com a vontade de Myre ativa, eu podia sentir a distância entre nós, o calor pulsante de sua vida. Quando liberei o éter, ele fluiu para Tessia. Suas feridas acenderam-se como chamas por trás dos meus olhos. Direcionei o éter até elas — aos nervos, às sinapses, aos tecidos cerebrais rasgados por microfissuras.
Ela respirou mais aliviada quase de imediato.
Agora, ruas e construções deslizavam para fora do portal. Com a runa divina espacial, reconstruí a zona semelhante a uma cidade dentro e ao redor dos escombros do Taegrin Caelum. O éter manipulava a mana para conjurar e moldar pedra; Destruição eliminava o desnecessário; o Réquiem de Aroa reerguia o que ainda podia ser salvo; e a runa espacial redesenhava a própria realidade física da área.
Senti a aproximação do próximo ponto de demarcação em Epheotus e preparei minha mente entrelaçada para se esticar ainda mais. Sylvie estendeu sua arte aevum, desacelerando o tempo por um instante, me concedendo o fôlego necessário para me preparar. Uma terceira faixa de terra se descolaria das outras, formando-se a partir da fenda em um ângulo de trinta e seis graus ao norte da primeira. Meu poder agora se estendia por todo o globo, enquanto a primeira faixa de terra se aproximava de Dicathen. Com minha mente tão fundida aos caminhos etéreos por meio do God Step, mais uma vez me senti observando a totalidade de ambos os continentes.
Vi Seth e Mayla entre as multidões em Maerin, já não mais sendo bombardeados por escombros de Epheotus, mas olhando para o céu com assombro, observando a terra se estender sobre suas cabeças; os Glayder cercados por seu conselho na sacada do Palácio de Etistin, todos à sombra de Epheotus, temerosos; Evascir, o titã que guardava o Santuário, matando uma besta de mana epheotana diante de Vincent, Tabitha e Lilia Helstea, que assistiam horrorizados, com a casa desmoronada atrás deles; Helen e Durden liderando um ataque contra uma criatura imensa de fogo e pedra negra que avançava sobre Blackbend; a Muralha destruída, soterrada sob a montanha; Anakasha do Clã Matali arrastando seu pai inconsciente, Ankor, para longe de uma ruína; e os grandes lordes asuras, cada um no coração de seus próprios domínios.
Mas não vi minha mãe. Nem minha irmã. Só me restava confiar na palavra de Myre, e acreditar que elas estavam realmente seguras.
Quase todo o segundo nível das Relictombs já havia sido trazido do reino etéreo, agora formando uma espécie de vila ao redor da base da nova estrutura, que lentamente ganhava forma. Um mapa das Relictombs, tal como Ji-ae o via, já se espalhava pela minha mente, junto a uma planta arquitetônica que nos permitiria preservar o que importava em cada zona, garantindo que o conhecimento etéreo impregnado na criação daquele lugar não se perdesse.
E, mais importante ainda, lançando os alicerces sobre os quais tudo aquilo que eu ainda pretendia construir deveria repousar.
A última estrutura a emergir do segundo nível foi a propriedade dos Grahnbel, agora lotada de refugiados escondidos. Com a vontade de Myre ainda pulsando viva dentro de mim, eu sentia cada vida ali como se tivesse meus dedos sentindo seus pulsos. Estava no processo de incorporar a propriedade à cidade quando o colapso do espaço que contivera o segundo nível sacudiu o portal. O rio etéreo, serpenteando através do vazio do outro lado, voltou a se agitar, e a própria realidade estremeceu.
Enquanto o tremor reverberava pelo meu corpo, fios dourados surgiram novamente diante da minha visão. Meus sentidos seguiram-nos até onde convergiam: uma silhueta feita inteiramente dos fios do Destino, escondida na circunferência do sol, visível entre duas faixas de terra em expansão.
Como se percebesse minha atenção, a voz do Destino soou em minha mente.
— Grey. Arthur Leywin. Eu vim para te agradecer. Seu desempenho atendeu a todas as expectativas práticas.
Senti-me afastando ainda mais de mim mesmo, minha visão, ainda pairando do alto, se distanciando do meu corpo e da presença dos meus companheiros.
— É você. O rio. Você está empurrando do outro lado. — Minha raiva veio como uma coisa fria e distante, amortecida pelas camadas do Gambito do Rei. — Por quê? Nós tínhamos um acordo.
— Sua visão de futuro era uma coisa maravilhosa, mas só poderia terminar assim. Embora Agrona tenha iniciado o processo, foi você quem concluiu o ato de perfurar completamente a barreira. Agora, o éter pode, mais uma vez, espalhar-se pelo mundo, libertando-se da pressão acumulada por tanto tempo. A necessidade da entropia.
— Ao custo de todo este mundo. — Quis gritar essas palavras, mas a emoção necessária não estava mais em mim.
— Todos os mundos morrem. Todas as estrelas se apagam. — Um zumbido áspero percorreu os fios dourados. — Você pode soltar agora, Arthur. Cumpriu tudo o que lhe foi exigido. Se seus impulsos mortais assim demandarem, considere que talvez tenha salvado todo o universo conhecido e desconhecido ao custo de um único e pequeno mundo.
O éter irrompeu pelas bordas do portal, rasgando-o ainda mais, inundando os contornos de Epheotus e sacudindo-o como um terremoto.
— Um pequeno mundo? — Encarei a forma feita de cordas douradas, atônito. — Mas você é deste mundo. Todas aquelas mentes e vozes que se fundem para formar o que você é… elas vêm daqui. Cada pessoa que já existiu e passou a fazer parte de você. Certamente ainda resta algum desejo de protegê-lo, não?
Não houve pausa. Nenhum indício de que minhas palavras tivessem despertado qualquer reflexão na entidade inumana.
Apenas…
— Não.