Lançamento julho 12, 2025
POV ARTHUR LEYWIN
Apareci bem no centro dos salões vazios e assombrados do relicário de Agrona. Os corpos de Kezess Indrath e Agrona Vritra jaziam a meus pés, espalhados ao acaso junto comigo. Vê-los ali, sobre a pedra fria e árida de Taegrin Caelum, tornou suas mortes subitamente mais reais. Como um ponto final.
Mas… não era.
Aqueles dois lordes asuras haviam sido uma ameaça. Para mim, para minha família, para meu mundo. Ambos presos a ciclos forjados por suas próprias mãos, moldados por séculos de arrogância e convicção cega, incapazes de coexistir com as “raças inferiores” de forma minimamente justa. Enquanto Agrona tivesse sido um perigo constante e ativo, era Kezess quem representava a maior ameaça, ainda que só viesse a se revelar em cinquenta, cem ou mil anos. Enquanto ele existisse, não havia futuro possível para meu mundo. E nenhuma promessa que fizesse poderia jamais ser digna de confiança.
O Taegrin Caelum estava surpreendentemente silencioso. A cerca de trinta metros, Tessia e Sylvie estavam diante da projeção djinn, o único traço de estrutura naquela vastidão vazia. A mão de Tessia pressionava o cristal do invólucro, suas sobrancelhas franzidas sobre os olhos fechados, os lábios apertados. Pelo sentido extra que o Realmheart me conferia, senti o mana pulsando entre ela e o cristal, num vai e vem contínuo.
Bom, pensei. Vou precisar da ajuda de Ji-ae. Se ela conseguiu me encontrar em uma dimensão oculta do outro lado do mundo, então poderia calcular o necessário para impedir que Epheotus colidisse com o planeta.
Sylvie se virou, sentindo minha presença. Seus olhos dourados, como um reflexo dos meus, baixaram para os corpos a meus pés Ela tocou Tessia, que se sobressaltou e afastou-se do cristal. Quando Tess me viu, seu rosto se iluminou, e ela deu alguns passos apressados em minha direção, como se fosse se lançar em meus braços, mas então seus olhos recaíram sobre os corpos, e seus passos vacilaram.
Regis saltou da dobra do meu braço quando passei por cima do corpo de Agrona, indo ao encontro de Tessia. Permiti-me um momento apenas para respirar, para me ancorar no calor dela. Minha única mão restante se ergueu até seus cabelos, deslizando devagar entre os fios sedosos.
— Você está bem? — Ela perguntou, olhando para o espaço onde antes havia meu braço.
Não respondi de imediato. Precisava de um momento para refletir sobre a pergunta. Eu estava? Talvez isso nem importasse. Recuei um passo, deixando minha mão escorregar até sua face.
— E você?
Seu olhar passou por mim até alcançar Agrona. Uma mão segurou a minha contra seu rosto; a outra se fechou em punho ao lado do corpo. Ela não me olhou quando falou:
— Ele era um monstro, Arthur. O homem mais horrível que já conheci ou imaginei. Não via ninguém como pessoa. Toda vez que minha mente começava a emergir dentro do meu corpo, quando eu tentava alcançar a Cecilia, ele me empurrava de volta. Era como tentar respirar, apenas para alguém afundar sua cabeça na água de novo. Sempre me afogando, mas nunca morrendo. — Ela encostou a testa em meu peito. — Acho que nunca odiei ninguém antes, Arthur. Mas eu odiei ele.
Soltei o ar num suspiro trêmulo, desejando saber dizer algo melhor naquele momento.
— Ele nunca mais vai machucar ninguém.
Os braços de Tessia se enroscaram ao redor da minha cintura, puxando-me para mais perto.
Sylvie havia se afastado, parada agora junto aos restos de Kezess. Suas emoções estavam silenciadas, talvez para me deixar concentrar, talvez para guardar algo só para si. Provavelmente os dois. Ao notar meu olhar, seus pensamentos tocaram os meus — leves como asas de borboleta —, assegurando-me que ela estava bem.
Em algum lugar muito próximo, um estrondo repentino como uma avalanche sacudiu a fortaleza ao nosso redor, puxando-me de volta ao presente.
— Preciso falar com Ji-ae.
Tessia suspirou e se ergueu nas pontas dos pés para me beijar. Um toque breve, mas quente o bastante para aquecer meu peito e minhas bochechas.
— É melhor você se apressar. Ela está… desaparecendo.
Meu coração disparou.
— O quê?
Sylvie passou por mim, liderando o caminho até o cristal. Só então notei o motivo de Tessia ter conseguido tocá-lo: os anéis de pedra já não orbitavam o dispositivo.
— Foi pouco antes de você voltar. Deve ter acontecido quando Agrona morreu. Um tipo de onda de choque atravessou o sistema dela.
Aproximei-me rapidamente do invólucro, procurando por sinais de dano físico, mas não vi nenhum.
— Ji-ae?
Tessia me alcançou e segurou minha mão, guiando-a com delicadeza.
— Você precisa tocar o cristal — disse, pressionando minha mão contra a superfície.
Senti uma onda de consciência me atravessar, outra presença se conectando à minha.
— Ah. Arthur L-Leywin. Você foi bem-sucedido. Venceu. E agora, só resta um caminho para seguir em frente. — A voz em minha mente arrastava-se, com estalos e falhas, como se cada sílaba precisasse vencer um obstáculo invisível para existir. — Por favor. Você deve completar minha diretriz primária. Não permita que as Re-Rel-Relictombs sejam destruídas.
A energia no cristal se dissipava a cada segundo. Ji-ae tinha minutos. Talvez menos. Agrona havia feito isso?
— Parece que ele implementou um mecanismo oculto de segurança na minha rede interna. Com sua m-mo-morte, parte da magia que me ancorava às… Relictombs implodiu, rompendo minha fonte de energia e co-com-comprometendo a integridade das minhas estruturas internas.
Respirei fundo, buscando estabilidade. Uma mão cerrada em punho ao lado do corpo, a outra pressionada com força contra o cristal frio e liso.
— Ji-ae, me escute. Eu sei como impedir que o reino etéreo se rompa e, ao mesmo tempo, salvar as Relictombs, mas não posso fazer isso se Epheotus destruir tudo antes. Preciso da sua ajuda.
Usando as propriedades analíticas da última pedra-chave, eu havia mostrado ao Destino como o éter contido poderia ser liberado lentamente, ao longo do tempo, sem devastar a vida neste mundo. Porém, a natureza do processo, combinando o Gambito do Rei, o Destino e a própria pedra-chave, tornava impossível absorver cada detalhe. Especialmente no que dizia respeito ao caminho até um futuro distante. Todas as visões se tornaram turvas e imprecisas nesse ponto, pois eu não conseguia enxergar o tempo ao redor da derrota do simulacro de Agrona. O rompimento dos fios do Destino havia lançado ondas que reverberariam por anos.
Eu sentia a fenda se alargando do lado de fora. Sem Kezess, seu povo já não conseguia mantê-la sob controle. Se toda Epheotus transbordasse por aquela ferida e colidisse com este mundo, ambos seriam destruídos, e o futuro possível que vislumbrei jamais chegaria. No entanto, eu não sabia como detê-lo.
Isso não é inteiramente verdade, admiti a mim mesmo.
Regis, que havia me seguido com o passo arrastado e agora me fitava do chão, respondeu ao pensamento com rosnado baixo e ambíguo.
Houve um tremor, como o equivalente mental de alguém lutando para respirar.
— Te-temo que minha mente esteja…quase perdida. Mas, se for rápido…
Ainda que doesse, ativei o Gambito do Rei, mergulhando na capacidade ampliada de raciocínio e cálculo que ele proporcionava.
— Quanto tempo acha que temos? — perguntei em voz alta e também com o pensamento, dirigindo-me a Ji-ae.
— Tenho apenas alguns instantes. Este mundo? — Houve uma pausa estalante, seguida de ruído. — Não posso di-dizer. Uma hora. Não mais… não mais.
Não perdi mais tempo. Comecei a expor meus pensamentos na esperança de extrair o máximo possível da projeção djinn. Minha primeira proposta era condensar Epheotus em um continente, realocando-a aproximadamente onde estava antes.
— Baseando-me na minha compreensão de Eph-Epheotus… isso exigiria a destruição de noventa e um a noventa e oito por cento da terra natal dos asura, dependendo de quanto oceano você estaria disposto a deslocar. Qualquer erro poderia r-resultar em inundações tanto em Dicathen quanto em Alacrya.
Assenti, já tendo imaginado isso.
— Mas… e se fosse algo como uma lua? Com a runa divina espacial, talvez eu conseguisse reformar a massa numa esfera, posicionada fora da atmosfera.
— Uma pro-proposta… i-interessante. Vejo dois problemas. Primeiro, a fenda está localizada dentro da atmosfera deste mundo, o que exigiria que você realocasse Eph-Epheotus inteira a milhares de quilômetros de distância, em órbita segura. Segundo, lá… vo-vo-você precisaria então criar uma atmosfera ao redor da nova lu-lua Epheotus.
Segui em frente com ideias mais abstratas, menos ligadas às limitações físicas como as compreendia, conceitos elevados demais para que eu explorasse sozinho todo seu potencial.
Até que Ji-ae me interrompeu. Havia acabado de explicar um conceito peculiar, algo que me parecia extremamente improvável, mas que havia sido inspirado por alguns dos próprios projetos dos djinn.
— I-I-Isso… isso… poderia salvar até quarenta e cinco por cento da massa continental de Epheotus. — A voz dela estalava e se fragmentava ainda mais. — Os cálculos são… complexos. E eu esto-tou… chegando ao fim… do me-me-meu poder…
— Precisamos de mais tempo.
— O que podemos fazer, Arthur? — perguntou Sylvie. O tom dela era firme, insistente, quase um sussurro que exigia respostas. Tessia permanecia atrás, com o medo transbordando do rosto.
As perguntas giravam como engrenagens rangentes em minha mente, rápidas e repetitivas, sem jamais chegar a uma resposta concreta. Será que Sylvie conseguiria parar o tempo o suficiente para calcular como trazer Epheotus a este mundo sem destruí-lo, ou destruir ambos os mundos? Será que eu poderia usar o Réquiem de Aroa para conter Epheotus por mais tempo, ou selar a ferida, ou talvez reverter o estado do núcleo de Ji-ae para antes da armadilha de Agrona?
Minha mente cambaleou até Regis, e a runa divina da Destruição, justo quando um novo impacto fez a fortaleza tremer. Epheotus em si não precisa ser salvo para que este mundo sobreviva.
Meus pensamentos pareciam estar em uma espiral.
Ellie estava lá em cima. Minha mãe também. Será que conseguiria tirá-las a tempo? E se conseguisse, quem mais eu poderia salvar antes de condenar o mundo inteiro dos asura ao fogo? E se eu não conseguisse salvar todos, estaria moralmente obrigado a não salvar ninguém, só para evitar o risco de violência futura entre os sobreviventes e os “menores” que foram escolhidos no lugar deles? Mas… eu seria mesmo melhor que Kezess, condenando os asuras à morte?
Então, uma voz mais dura e mais fria respondeu dentro de mim:
Será que eu realmente tenho outra escolha?
Quando não respondi à pergunta de Sylvie, Tessia deu um passo à frente. Sua mão envolveu meu punho cerrado e, com delicadeza firme, o forçou a se abrir, entrelaçando seus dedos nos meus.
— Eu… posso te dar mais tempo.
As linhas emaranhadas de pensamento, todas competindo para se tornar o fio condutor, se alinharam num estalo, quando toda minha atenção recaiu sobre Tess.
— O que quer dizer?
Ela engoliu em seco, o movimento visível em sua garganta. Evitava meus olhos, mas havia uma concentração feroz em seu semblante. Seus dedos apertaram os meus, e percebi um tremor sutil neles.
— O núcleo dela está morrendo, mas a mente… todas as informações que compõem sua consciência… ainda está lá, certo? Ela só precisa de outro lugar para… existir.
Sua sugestão formou sentido em minha mente, e no mesmo instante todo meu corpo ficou tenso, rejeitando a ideia.
— Não, isso é… — Mas a frase morreu em minha boca.
Um fio da minha mente voltou ao Victoriad, à imagem de Tessia me olhando com súplica, como se pedisse a morte… e agora queria se colocar nessa posição de novo? Não. Tessia havia dividido seu corpo por tempo demais, sem jamais ter tido escolha. Ainda assim… diante da destruição iminente do mundo, da destruição de todos, seria mesmo crueldade pedir isso a ela… ou apenas uma necessidade?
Meu maxilar se contraiu. Eu não podia negar a ela a chance de ajudar a salvar a si mesma.
Talvez houvesse outro caminho.
— Eu é que deveria fazer isso. Ji-ae, você pode usar meu corpo como núcleo. Meu corpo e meu éter devem fornecer energia suficiente para você.
Houve um silêncio e, por um momento, temi que Ji-ae já tivesse partido. Então:
— Dado o tempo… t-talvez eu pudesse. Contudo, você nã-nã-ão sabe como me aceitar. Eu teria que lutar pelo controle, como Cecilia fe-fez com Te-Tessia. Sua mente se tornaria um campo de batalha, e tudo o mais se tornaria muito, muito, muito mais difícil…
Fechei os olhos e respirei fundo.
— Como Tessia pode fazer isso, então?
Foi Tessia quem respondeu:
— Há espaço. Um tipo de… vazio deixado por Cecilia. — Sua mão pressionou o cristal ao lado da minha. — Se você conseguir se transferir para mim, eu posso deixá-la entrar. A hesitação em sua voz não se refletia em sua postura física nem em sua presença mental. Seus lábios se firmaram, suas sobrancelhas se franziram com seriedade, e ela irradiava uma confiança que fortaleceu minha própria determinação.
— Com as ru-runas corretas — respondeu Ji-ae, lentamente. — Mas precisarei de mais tem-tempo.
Eu ainda estava hesitante, mas Sylvie, com o rosto franzido pela concentração de acompanhar aquela conversa em meio ao caos do Gambito do Rei, tocou de leve meus pensamentos:
— O peso de todos os problemas do mundo não precisa repousar apenas nos seus ombros.
Ela estendeu a mão até o cristal. O éter se moveu, criando uma jaula de tempo suspenso ao redor do núcleo, congelando a contínua degradação de sua fonte de energia. Em resposta, canalizei éter através do vínculo invisível que ligava o núcleo às Relictombs, usando o Réquiem de Aroa como condutor para restaurá-lo. Não podia refazer o feitiço de Agrona, mas podia redirecionar o vínculo para mim, tornando-me a nova fonte de poder de Ji-ae.
Ji-ae, sua mente ainda ativa no interior do núcleo, mesmo que a estrutura física estivesse agora congelada, usou esse súbito influxo de energia etérea para se projetar para fora.
O espaço ao nosso redor explodiu em branco. Sylvie e Regis desapareceram, e ali estava eu, lado a lado com Tessia.
— Está certa disso?
A voz era incorpórea, mas soava como Ji-ae.
— Estou — respondeu Tess, firme.
Uma silhueta feita de poder bruto, que eu só via como um lampejo de luz, avançou em direção a Tessia. Os olhos dela tremeram, e ela enrijeceu, virando o pescoço com um visível desconforto. Tinta começou a escorrer sobre sua pele em filetes, formando runas e símbolos à medida que as formas arcanas se solidificavam. De algum modo, aqueles desenhos pareciam mais limpos, menos agressivos, mais… Tessia, do que os que ela havia carregado como receptáculo de Cecilia.
Meus olhos seguiram a tinta até sua mão, que, surpreendentemente, ainda apertava a minha nesse lugar incorpóreo. Runas se formaram com a tinta. Com uma sensação de queimação suave, elas se entrelaçaram com outro conjunto que surgia nas costas da minha mão. Meus olhos se fecharam em sincronia com os de Tessia e, quando se abriram novamente, a silhueta havia desaparecido. O branco também.
O invólucro de cristal diante de nós agora estava escuro, sem o zumbido de mana ou éter.
— Ji-ae?
Enrijeci, pego de surpresa pela voz de Tessia em minha mente.
— Tess?
Ela se virou para mim, olhos arregalados, encarando minha boca.
— Você consegue…?
Assenti, sentindo um sorriso que não se formava por completo, esmagado entre múltiplas linhas de pensamento em conflito. Estávamos ligados, nossas mentes compartilhadas da mesma forma que a minha com Regis e Sylvie. Ergui nossas mãos unidas, examinando as runas entrelaçadas sobre nossos dedos.
— Um momento, por favor — veio uma nova voz. Ji-ae. Agora mais forte, mais estável, muito mais clara. — Vai… levar algum tempo para me acostumar.
Tessia fechou os olhos, mas eu ainda podia ver os globos se movendo rapidamente por baixo das pálpebras.
— Desculpe, Ji-ae. Vou tentar abrir mais espaço.
Sentia ambas as mentes se pressionando, disputando o controle limitado com empurrões variando entre gentileza e urgência. Mas Tess estava recuando dentro de si mesma, cedendo lugar com cuidado, guiando Ji-ae até o vazio restante.
A fortaleza voltou a estremecer com um novo impacto. Ouvi paredes cedendo e pisos desabando enquanto algo atravessava tudo em diagonal, descendo direto até nós. Meu éter reagiu de imediato, mas logo reconheci a assinatura de mana. O estrondo ficou mais alto a cada batida, até que, segundos depois, a extremidade oposta da sala desmoronou. Chul irrompeu para dentro, ignorando os escombros que desabavam ao seu redor, e apareceu diante de mim num piscar de olhos, pairando sobre o chão.
— Meu irmão! — arfou ele, desesperado. Nenhum alívio ou alegria em seu rosto, só medo. — O céu está desabando, e já não conseguimos acompanhar os bombardeios. Suas Lanças, Varay e Mica, junto com as Foices de Alacrya, estão protegendo o exército e a fortaleza como podem, mas eu… — Ele hesitou, engolindo em seco, lançando um olhar ao redor, até que seus olhos pararam nos corpos próximos. — Agrona está morto?
Eu assenti.
Ele relaxou, como se uma mola interna finalmente cedesse.
— Então a vingança foi cumprida. — Sua voz saiu entrecortada, forçando-me a erguer o olhar para encontrar seus olhos. A diferença de cor entre eles dava a impressão de que um lado de seu rosto era frio e inexpressivo, enquanto o outro ardia com propósito. — Mas a celebração terá de esperar. Qual é o seu plano, meu irmão?
Desviei o olhar de Chul para Sylvie, depois para Regis, e por fim para Tessia. Havia um anel púrpura brilhando ao redor de suas íris.
— Vamos ver com o que estamos lidando — falei.
Regis se fundiu ao meu corpo físico e desceu até meu núcleo. Então, juntos, voamos de volta pela fenda destruída que Chul havia deixado em Taegrin Caelum. Lá fora, o cenário era verdadeiramente apocalíptico.
O céu havia praticamente desaparecido, ofuscado por Epheotus. Era como se várias paisagens e estruturas tivessem sido comprimidas numa só: florestas, cordilheiras, oceanos; tudo se mesclava como um mapa topográfico distorcido. Vi campos de grama azul, picos cobertos de neve, planícies em chamas e florestas idílicas, castelos e cidades flutuantes feitas de névoa. E tudo aquilo… despencando, fragmentado, em gigantescos meteoros.
Uma torrente mágica imensa emanava de Epheotus, enquanto dezenas de milhares de asuras se agarravam às bordas da própria realidade, tentando mantê-la unida enquanto ela escorregava de volta para o mundo físico. Não era o suficiente…
No vale abaixo, Seris, Varay e Mica já haviam organizado os sobreviventes da batalha. Uma barreira poderosa de mana protegia o terreno, e embora pudesse conter o impacto de pequenos fragmentos de terra, não havia barreira capaz de resistir à colisão total de Epheotus com o nosso mundo.
Seris, Varay, Mica e, para minha surpresa, a Foice Melzri voaram até nós, vindos de onde pairavam sobre o exército.
— Vocês precisam tirar todos daqui — disse imediatamente, sem tempo para explicar o que pretendia ou contar o que aconteceu dentro do Taegrin Caelum. — O mais rápido e o mais longe possível. Agora — ordenei, quando percebi que Seris e Mica estavam prestes a fazer perguntas.
Para Chul, acrescentei:
— Vá com eles. Volte a Dicathen como puder, e avise Mordain sobre o que está acontecendo. As fênix precisam estar prontas.
O meio-fênix assentiu com seriedade, bateu com força no meu ombro e se virou para os outros.
— Vocês ouviram! Vamos!
Imediatamente, voltei minha atenção para Tessia.
— E os cálculos?
— Quase prontos — respondeu Ji-ae.
Respirando fundo, canalizei éter pelos meus canais até alcançar a runa divina espacial, então projetei a energia para cima. Os rasgos nas bordas de Epheotus já representavam um “espaço manipulado”. Agarrei a própria ferida, contendo o avanço do continente asura. As bordas ruíam, e enormes massas se despregavam como meteoros flamejantes.
Abaixo, o que restava do nosso exército corria por um túnel aberto nos escombros, vestígio do colapso que ocorreu quando os portais das duas Relictombs apareceram. Eu precisava que todos estivessem longe daquela área. Foram longos minutos de espera.
— Arthur, concluí os cálculos necessários para remodelar o continente epheotano — informou Ji-ae nesse meio-tempo. — A energia exigida é… significativa, mas o design preserva todos os pontos estrategica e culturalmente importantes, e causa pouquíssimo impacto nos continentes existentes.
— Quão significativa? — perguntei.
Ao meu lado, Tessia mordeu o lábio e estremeceu. Lancei-lhe um olhar de dúvida, mas ela apenas forçou um sorriso e assentiu, como quem diz que estava tudo bem.
— Mais do que você pode canalizar com segurança — respondeu Ji-ae. — Muitas vezes mais do que seu núcleo etéreo atual comporta.
Soltei o ar com força, ativando o Gambito do Rei para enfrentar o problema. Com a mente sobrecarregada, os minutos pareceram se comprimir até que o exército finalmente estivesse fora de perigo. Eu não podia esperar mais. Precisávamos começar, ou seria tarde demais. Se já não fosse.
O Réquiem de Aroa se acendeu contra minha coluna, e partículas de éter vibrantes começaram a se desprender de mim como pólen ao vento. Elas flutuaram para baixo em duas linhas espiraladas. O suor brotou de minha testa no mesmo instante, enquanto eu mantinha Gambito do Rei, Realmheart e Réquiem de Aroa simultaneamente, forçando meus canais etéreos — forjados em lava — a empurrar energia suficiente para fora.
As partículas seguiram pelas bordas das molduras quebradas dos portais, se acumulando nas rachaduras e nas lacunas. Uma lembrança da zona nevada nas Relictombs veio à minha mente, e me peguei torcendo para que Caera, que estava lá embaixo com o restante do exército, tivesse sobrevivido à batalha. Sem ela, o que eu fazia agora talvez nem fosse possível.
Enquanto a runa divina reconstruía as molduras dos portais, retrocedendo-as no tempo até o ponto em que ainda estavam inteiras, os próprios portais começaram a piscar, e então se acenderam, lançando uma luz tênue sobre a encosta da montanha.
God Step ardeu em resposta, ativado pelo éter. Com a runa espacial, agarrei o ponto minúsculo no centro de cada portal e comecei a puxar, alargando-os rapidamente. O espaço rasgou-se, as molduras recém-reparadas estilhaçando-se novamente, mas eu os mantinha abertos à força. Quando eles se encontraram…
O espaço escapou do meu controle quando os dois portais se expandiram e colidiram, apenas para se deformarem, recusando-se a se misturar, como óleo e água.
Acima, o próprio ar pareceu estremecer quando perdi brevemente o domínio sobre o espaço em torno da ferida. Uma massa de terra com quilômetros de extensão se despedaçou, despencando além das montanhas incendiando a atmosfera em sua queda.
Mesmo com Epheotus em queda e o portal das Relictombs fervilhando, uma onda serena de éter expandiu-se pelas Montanhas Presas do Basilisco. De um lado, Tessia segurava meu braço com força, como se fosse cair sem meu apoio. Do outro, Sylvie, canalizando uma arte aevum para desacelerar o tempo, apertava meu ombro com firmeza.
Ajustei meu controle sobre as quatro runas divinas ao mesmo tempo, e Sylvie soltou o feitiço. Juntos, puxamos uma respiração trêmula.
Voltei meu foco aos dois portais. Eram fendas distintas, como rasgos em lados opostos de um tecido. No exemplo mundano, só seria possível uni-los rasgando o tecido até que se encontrassem, mas com magia e portais… não era tão simples. Eles se conectavam a lugares distintos, e, embora estivessem lado a lado deste lado da realidade, seus destinos poderiam estar separados por uma distância incalculável.
Mas eu não precisava alcançar esses destinos. Precisava criar um novo.
O primeiro nível das Relictombs era um ponto fixo, com múltiplos portais de entrada e saída. Com meus sentidos estendidos através da runa espacial e do God Step, segui esses caminhos e fios conforme se estendiam além dos portais até as zonas isoladas dentro do vazio. Usando os caminhos etéreos como fio, comecei a costurar os portais antigos no tecido de dezenas de outros espalhados por toda a zona. Em toda Alacrya, nos salões da Associação dos Ascendentes, os portais de ascensão estavam se apagando um a um, enquanto eu os desligava.
Por fim, os dois portais nas montanhas abaixo de mim se fundiram, sangrando um no outro até formar um único e colossal portal que preencheu todo o vale.
Minha respiração travou, e meus olhos reviraram quando o peso daquilo desabou sobre mim.
— Ji-ae… o que é isso?
Tessia se agarrava a mim, olhos fortemente cerrados, o rosto pálido.
— A força do reino etéreo empurrando contra a fronteira com o plano físico está significativamente maior do que deveria — pensou Ji-ae, sua mente acelerada.
O portal abaixo, assim como a fenda acima, estava se expandindo fora do meu controle. Engolia partes da encosta da montanha, provocando deslizamentos e nuvens densas de poeira. Meus sentidos, entrelaçados aos caminhos etéreos, se ampliaram violentamente, rasgando minha mente com uma dor aguda enquanto eu tentava absorver a totalidade do mundo de uma só vez.
Joguei-me no Gambito do Rei, e cada ramo da minha consciência se duplicou, depois quadruplicou, e assim por diante, se multiplicando até onde eu já não podia mais contar.
Vi o exército em retirada, voando em balsas de gelo sobre ruínas fumegantes. A Cidade Vitoriosa reduzida a crateras onde bestas de mana de Epheotus uivavam. A vila de Maerin, com todos os magos trabalhando juntos para proteger o centro da cidade sob escudos mágicos, observando os meteoros despencarem ao longe. Uma onda gigante avançando contra litorais distantes, erguida pelas ilhas em queda. Xyrus, envolta numa concha de fogo, sob uma chuva de rochas em combustão. Os escombros de Elenoir, com seus últimos brotos de vida carbonizados.
Era demais. Eu não conseguia absorver tudo. Não conseguia processar. Minha mente estava sendo dilacerada.
— Então solte — disse uma voz. Ou várias. Tantas vozes na minha cabeça agora, além da minha própria…
Mas eu escutei. Parei de tentar controlar. Simplesmente… soltei. Foi como flutuar para fora do meu corpo, enquanto minha mente, um nó selvagem e emaranhado de pensamentos, se separava da dor física. A teia de sensações ainda estava ali, mas como ruído de fundo. Eu podia continuar, custe o que custar.
— Arthur! — gritaram as vozes, dentro e fora da minha cabeça.
Meus olhos se abriram de súbito. Era como se eu olhasse para mim mesmo de cima, vendo meu corpo pendendo entre Sylvie e Tessia. O sangue cobria meus lábios e queixo, enquanto eu tossia violentamente, embora não sentisse a dor.
O portal unificado continuava a crescer, já alcançando metade da altura do Taegrin Caelum. Em instantes, engoliria toda a fortaleza.
Soltei o controle espacial que mantinha sobre a fenda.
O Gambito do Rei lutava para desfazer os nós da minha consciência, meus pensamentos uma massa indistinta em vez de múltiplas ideias claras e separadas. Eu vinha canalizando energia ao limite absoluto do que meu corpo podia suportar. E não foi o suficiente. Precisava de foco.
— Ele vai se expandir até tocar a fenda acima — alertou Ji-ae com sua calma fria.
E quando isso acontecesse, o reino etéreo explodiria. E tudo estaria perdido.
Tínhamos errado nos cálculos. A pressão do reino etéreo era dez… não, cem vezes maior do que deveria. Algo estava nos empurrando de volta.
E então entendi. O rio. Tempo. Destino. Toda essa pressão crescente.
— Merda! — grunhi, ao recuar uma fração da energia das runas divinas para reforçar meu corpo e subir mais alto, arrastando Tessia e Sylvie comigo.
— Art… — Tessia me chamou. Olhei para ela. Seu rosto estava manchado de sangue escorrido do nariz, e seus olhos estavam quase tão vermelhos quanto os de um Vritra.
O esforço de servir como canal para tanto poder bruto, para processar a mente de Ji-ae, estava dilacerando-a por dentro.
— Precisamos estabilizar o portal e a fenda — insistiu Ji-ae. — Você precisa de mais éter. Uma quantidade significativa.
O éter jorrava pelas bordas das duas rupturas no tecido do espaço. Alcancei a armadura relíquia, incerto sobre seu estado após o ataque de Kezess, mas ela respondeu ao meu chamado, deslizando sobre meu corpo como esperado. Imediatamente, seu magnetismo começou a atrair o éter do ambiente, puxando parte do fluxo em minha direção. Mas mesmo absorvendo tudo o que conseguia… ainda era pouco. Muito pouco.
Pensei novamente no rio, de como ele passou por mim com uma força tão devastadora que um novo nível do meu núcleo se formou em questão de instantes. Se ao menos eu tivesse tanto éter agora…
Meu estômago gelou. Seria possível? Funcionaria? Seria suficiente?
Com a respiração trêmula, encarei Sylvie.
— Preciso de um segundo.
Ela assentiu, o rosto tenso. Seus olhos se fecharam, e senti o pulso de sua magia se espalhar pelas montanhas.
Cada camada do meu núcleo nada mais era do que éter condensado, endurecido em forma física. Teoricamente, todo o éter usado para formar cada camada ainda estava ali, apenas inerte, solidificado, com forma definida. Essas camadas fortaleciam o núcleo, permitindo armazenar mais éter e em maior pureza. Mas elas próprias… representavam um reservatório imenso de energia. Se ao menos eu pudesse acessá-lo.
Voltei-me para dentro. Toquei as bordas da quarta camada, firmemente enrolada sobre as demais, que por sua vez guardavam os fragmentos despedaçados do meu núcleo de mana. Em vez de abrir os canais do meu núcleo para deixar o éter fluir, tentei acessar a camada em si, despertar aquele éter adormecido, redirecioná-lo.
Era como tentar talhar granito com a unha. As camadas haviam sido forjadas com desespero, endurecidas e infundidas com propósito, a ponto de resistirem a uma pressão interna absurda.
Não. Eu não podia arranhar a camada. Eu precisava libertá-la. Aquilo era poder. Podia ser redirecionado.
Entrelaçado por dezenas de ramificações da minha mente, desenhei a imagem do que precisava: meu próprio éter, redirecionado, jorrando do núcleo apenas para envolver e pressionar a casca externa. Era o meu éter.
Minha vontade, forjada em punho, fechou-se em torno do núcleo e apertou com força.
A quarta camada se rompeu.
Meus canais não conseguiram contê-lo. O éter, antes tão perfeitamente controlado, explodiu em fúria dentro de mim.
De algum lugar acima, vi meu corpo se despedaçar, envolto em névoa vermelha e púrpura, enquanto Sylvie e Tessia gritavam.